domingo, fevereiro 25, 2007

NOEL - O POETA DA VILA



O filme Noel, o poeta da Vila, ainda não estrou nacionalmente, provavelmente em março ou abril deste ano de 2007 ele estará nas telas de todo país. Mas em janeiro agora pude assistir dentro de uma mostra internacional de filmes inéditos esta obra reveladora da personalidade artística e pessoal deste nobre poeta da nossa canção popular.

O ator carioca Rafael Raposo (carioca iniciado no teatro) incorpora, até fisicamente em função da característica singular do queixo de Noel, o compositor fluminense de um modo muito claro e consistente para se ter uma ideia de como agia, falava, pensava o poeta da vila. Até mesmo na sua forma de compor, de escrever, de se inspirar e de se relacionar com amigos, mulheres e boêmia. Todos esses aspectos são ricos dentro do filme. Noel Rosa é apresentado como um artista da vida, sensível e elegantemente malandro, apaixonado e constantemente inspirado. A cinebiografia é exemplar em reconstruir Noel e trazê-lo de volta ao centro, afinal Noel Rosa evoluiu o nosso samba e criou uma linguagem fundadora do conceito do samba brasileiro. Se a poesia flertou com o samba, Noel é responsável também, em letras que escritas no papel desvinculadas da melodia, são verdadeiras crônicas da vida carioca e de um lirismo universal.

O filme mostra Noel conhecendo outro sambista notável, Ismael Silva, sua forma de vender sambas, de ir até ao morro, e se infiltrar no núcleo do sambistas para se mostrar. Assim como a convivência com a tuberculose e suas paixões fulminantes, mote de muitos belos sambas e textos. O diretor paulista Ricardo Van já havia dirigido um curta-metragem sobre Noel, agora a vida desse gênio está num longa definitivo e absolutamente comovente. Toda beleza que Noel produziu e toda sua fluência musical/poética é extraída da sua rotina carioca de noites, cabarés, porres, numa mescla de burguesia e lapa, de malandragem e elegância e ternura nas paixões. Camila Pitanga interpreta o seu grande amor. Noel também é mostrado na Rádio Nacional, gravando e produzindo sambas eternos.

Vi e me encantei. Noel poeta e Noel pessoa. Noel da Vila Isabel.

ROBERTO PIVA





Sim, há leitores que, há pouco mais de quatro décadas, engalfinharam-se em livrarias por uma obra de poesia. Era 1963 e a pequena editora Massao Ohno lançava "Paranóia", livro que, com acidez e liberdade estética, como dito e repetido desde então, perfazia a gênese da cidade de São Paulo, a uma vez louvando e maldizendo suas ruas e avenidas. Lançava-o para vê-lo esgotado em duas velozes semanas. Roberto Piva, seu autor, era então um jovem recém-passado dos 20 anos, muito diferente do senhor que agora vê suas obras quase completas relançadas pela editora Globo. Afora uma e outra desejável omissão, seus poemas ressurgem reunidos em três volumes, o primeiro dos quais, "Um Estrangeiro na Legião", O segundo tem previsão de publicação ainda para este ano, e o terceiro, que inclui o mais místico (ou "xamânico", como ele define), "Estranhos Sinais de Saturno", sai em 2006.

Os leitores da década de 1960 sem dúvida, em matéria de poesia, os que mais se aproximariam do que se pode chamar de "fanáticos"-- talvez se entristecessem ao ver Piva trancafiado em seu apartamento na Santa Cecília, já descrente da vida que pulsa nas ruas. Das ruas, segundo denunciam suas janelas fechadas e empoeiradas, só lhe alcança o som das buzinas. Das calçadas, quem sabe, um ou outro leitor, um ou outro aspirante a poeta, a tocar-lhe de surpresa o interfone. Solitário, Piva se cansou da cidade em cujas praças e parques despejou seu verbo e, não fosse a falta de dinheiro, já teria se retirado para morar "no meio do mato, num sítio qualquer", em suas mais apoéticas palavras. "Não sou um poeta da cidade; sou um poeta na cidade", retifica o paulistano de nascença, para possível aflição dos que nele leram o Walt Whitman desta metrópole ou o Rimbaud de um céu mais cinzento.Resta-lhe, entretanto, ainda que por vezes com amargura semelhante, ler os poemas que retira das pilhas de livros que ocupam seu apartamento, de Murilo Mendes a Federico García Lorca, passando por Dante Alighieri. E resta-lhe também, quando atiçado, conversar sobre eles e sobre ela, sua fiel companheira, a poesia."A poesia, dizia André Breton, é a mais fascinante orgia ao alcance do homem. E Freud explicava que ela liberta as nossas tensões psíquicas", ensina Piva, aproveitando para explicar o modo como lhe sobrevêm os poemas. Escreve em "iluminações", em "surtos", que curiosamente acumulam-se em intervalos de 12 em 12 anos. Os três volumes que a Globo lança agora correspondem justamente a seus três principais surtos, como explica Alcir Pécora, organizador da publicação.O primeiro, "de viés beat, whitmaniano e pessoano"; o segundo, "de traços psicodélicos e experimentais"; o terceiro, "místico e visionário", todos nas palavras de Pécora. A poesia tem de ser assim, em surtos? "A minha poesia tem de ser assim", responde Piva. "Ou melhor", corrige, após segundos de silêncio, "é assim".Em todos os seus surtos existiria a mesma necessidade de transgressão que havia no primeiro? "Não, depende do ritmo, da iluminação do momento, da contemplação. Poesia não é coisa programada", anuncia, para novamente deixar imperar o silêncio enquanto pensa. "A poesia não é lógica. É analógica", despeja.Mas é um instrumento adequado para combater "as odiosas convenções sociais", como anunciara no posfácio de "Piazzas", que praticamente constituía um manifesto de suas intenções, éticas ou estéticas? "Sim, desde que não seja engajada e programática". E emenda: "poesia, como dizia Octavio Paz, é uma arte minoritária. E uma minoria deixa de ser minoria quando tem a posição transgressora correta".O silêncio volta a protagonizar o ar do claustrofóbico apartamento. O mote da conversa talvez estivesse, de fato, exasperado. Talvez não merecesse mais palavras ditas. Piva, no entanto, tem algo mais a pontuar, quem sabe conferindo sentido e redenção a tudo aquilo: "A poesia é um caminho que exige vocação e sacrifício. Mas tem suas alegrias também".


Folha de São Paulo - caderno Ilustrada/2005.