quinta-feira, junho 03, 2010

n.d.a É TUDOS EM ARNALDO ANTUNES




Os vários significados possíveis num poema parecem ir além da forma convencional de compor versos normais, isto é, dispostos de forma organizada na página. Não é de hoje que um poema se lê ao mesmo tempo em que é visto na página, comunicando poeticidade também por sua forma gráfica.

O novo livro de Arnaldo Antunes, n.d.a. lançado em maio pela editora Iluminuras, apresenta o autor em sua conhecida marca verbivisual, uma das bases da sua poética, em que palavra e imagem são complementares para o significado do poema. Nesse sentido, uma das novidades é a inserção de uma certa tridimensionalidade gráfica em alguns poemas, o traço concretista em peças que se destacam pela forma.

Arnaldo Antunes sempre buscou a estranheza como matéria principal em sua poesia. Essa estranheza se passa tanto no plano da linguagem como na forma que o poema surge na página. Do mesmo modo em que a caligrafia é desenvolvida como extensão do significado, como em seu primeiro livro, Ou E, de 1983, editado artesanalmente pouco antes do estouro dos Titãs, a linguagem persegue mais o deslocamento do sentido do que a analogia.

Em seus livros posteriores, Psia, de 1986 e Tudos, de 1990, os poemas aparecem em diversos formatos gráficos, sempre alternando entre certa animação impressa e uma condensação verbal, síntese e ritmo convivem no mesmo plano sintático da fragmentação dos vocábulos, sugerindo não apenas a leitura habitual, horizontada na página.

Em suas formas variadas, n.d.a se faz coerente com a proposta estética de Arnaldo, por desenvolver os eixos principais do seu trabalho poético, a variação de possibilidades gráficas e a subversão da linguagem pelo deslocamento, mais metonímico que metafórico. Nesse novo livro, os poemas verbais são mais longos e o autor aproveita sua produção plástica integrando ao volume poemas/objeto. Há também uma série de postais, fotografias tiradas pelo próprio Arnaldo em que as surpresas poéticas aparecem nas escritas de rua, onde as letras da poluição visual, deslocadas do seu contexto, geram efeito criativo, por exemplo: num dos postais a palavra “divino” aparece escrita numa caçamba de lixo.

Arnaldo Antunes consegue em seu trânsito habilidoso entre o disco e o livro, entre a chamada alta e baixa cultura, a mesma dicção poética. É comum para esse artista usar o mesmo refrão de uma letra num livro de poemas, num haicai, ou apresentado no cartaz com um apelo visual, é para poucos essa fruição inteligente dos elementos da cultura pop com sofisticação estética. “Eu berro as palavras no microfone/ da mesma maneira com que as desenho, com cuidado, na página.” Como escreve no poema/prefácio do livro Psia, de 1986. “Psia”, que, para o autor, é feminino de psiu, aquele som que se usa para chamar alguém. O estalo do lábio é signo na língua de Arnaldo. Da mesma forma que a canção Beija eu, gravada por Marisa Monte, subverte a regra gramatical deslocando o eu para depois do verbo. Ou como no livro As Coisas, de 1992, em que a didática inventiva das obviedades é escrita com o olhar infantil, o estreito repertório de palavras gerando sentenças inusitadas: “Mulheres têm dois peitos, os homens tem um peito só”.

Pode-se dizer que Arnaldo Antunes é um desses raros artistas polivox, capazes de extrair densidade poética escrita de fotografias, como no livro em parceria com Márcia Xavier, ET Eu Tu, de 2003, até escritos epigramáticos do livro Palavra Desordem, de 2002, onde os poemas são apresentados como slogans, cartazes vazados em letras garrafais, um trabalho verbal e visual ao mesmo tempo, ou como nessa série de postais do novo livro, a rasura urbana produzindo alegorias. O lançamento de n.d.a (parte dele já havia sido lançada na antologia Como é que chama o nome disso, Publifolha, 2006) vem acompanhado de outra compilação de Arnaldo, reunida em Melhores Poemas (organizada por Noemi Jaffe, Ed. Global, 2010), que traz um panorama geral da produção do compositor.

Experimentar é antes uma forma de fazer, próxima da possibilidade de invenção, propósito de toda boa poesia. Do máximo inesperado, pode conter a licença poética. Oswald de Andrade, por exemplo, tão identificado aos princípios poéticos de Arnaldo Antunes, escreveu: aprendi com meu filho de dez anos que poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi. A produção poética de Arnaldo, sobretudo o lançamento n.d.a, arrisca novas descobertas, novas molduras, traços e pronúncias para o poema que, há tempos, já não é mais o mesmo.