quarta-feira, maio 06, 2015

LADODENTRO ENTREVISTA: ANTONIO CÍCERO




Antonio Cícero é poeta e filósofo e, embora considere essas atividades opostas, consegue a proeza de transitar livremente entre os dois códigos. Através da poesia, Antonio Cícero tornou-se um dos principais letristas da MPB em suas parcerias com a irmã Marina Lima, desde o primeiro disco da cantora, Simples Como Fogo, de 1979, Cícero é o letrista da maioria das canções gravadas por Marina, é autor de sucessos como Pra Começar, Charme do MundoVirgem, À Francesa, Maresia, Eu Vi o Rei, Acontecimentos, Fullgás, entre outras dezenas de canções. Existem parcerias recorrentes também com João Bosco, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto, Orlando Moraes.  Antonio Cícero é também um dos porta vozes do Rock Brasil, além de poeta atuante e um dos mais relevantes da geração 90. Ele sempre disse que só publicou poesia em livro mais tarde pois já sentia-se publicado nos discos, uma vez que uma multidão cantava em alto e bom som suas palavras num ginásio lotado.

Na poesia livresca, Cícero publicou Guardar (1996), A Cidade e os Livros (2002), Porventura (2012). Seu livro O Mundo Desde o Fim (1991) apresenta seu pensamento filosófico e o livro Finalidades sem Fins (2006), reúne artigos e ensaios onde poesia, canção, letra e filosofia são assuntos essenciais. Desde que Marina Lima sapecou o poema Canção da Alma Caiada da sua gaveta, sem o consentimento do autor, e a transformou em canção, o autor de  Último Romântico (parceria com Lulu Santos) vem produzindo poemas que migraram das páginas para os discos, estreitando a relação poesia e letra de música e um conteúdo lírico e reflexivo capazes de tornar Antonio Cícero um dos pensadores contemporâneos mais importantes do país, seu trabalho ganha destaque como filósofo aliado ao seu trabalho de poeta da canção e do livro. 

Cícero não hesita em publicar em livro uma letra de canção e torná-la mais que letra de canção, também um poema para ser lido sem o suporte da melodia e ainda assim emocionar o receptor. Segue uma entrevista inédita exclusiva para o LADODENTRO em que o poeta reflete de forma preciosa sobre os ofícios da nossa poesia. Segue o blog do entrevistado: http://antoniocicero.blogspot.com.br/.


Duas ou três utilidades da poesia como arte crucial no mundo pós utópico. 

De certo modo, a verdadeira utilidade da poesia é nos transportar para uma dimensão da existência em que a utilidade não conta. Em praticamente toda a nossa vida, damos valor às coisas segundo a sua utilidade. É na medida em que uma coisa serve para tal ou tal coisa, na medida em que ela é um meio para outra coisa, que ela tem valor. Na poesia – e, de maneira geral, na arte – não é assim. Como a brincadeira ou o jogo, a poesia, de maneira geral, não serve para nada. O que ela faz é mobilizar e fundir de modos surpreendentes todas as nossas faculdades: intelecto, imaginação, sensualidade, sensibilidade, razão etc. Nela, espírito e matéria se confundem. Desse modo, ela nos proporciona um outro modo – não utilitário – de apreensão do ser.

Como você percebe a ideia de gerar outros suportes para a veiculação do poema (assim como a canção), cartaz, vídeo, outros recursos para além do livro?

Muitas vezes olhamos para um poema e ele nada nos diz. Aí, um dia, quando menos esperamos, olhamos para o mesmo poema e ele nos parece maravilhoso. É que, no primeiro dia, estávamos fechados para a poesia, ou para certa poesia; estávamos fechados para essa dimensão não-utilitária da existência e da linguagem; já no outro dia, estávamos abertos para ela. Ora, não podemos prever quando ocorrerá a nossa abertura à poesia. Veicular a poesia em outros suportes torna mais possível que ocorra esse encontro entre o poema e o momento em que o sujeito esteja aberto para a poesia. Assim, eles criam a possibilidade de que, de repente, alguém que nunca ligou para a poesia, descubra a maravilha que ela pode ser.

As aproximações entre poesia e canção não são mais novidade. Você, que escreve para o canto e para a página e aproxima tão bem a poesia cantada e a poesia de livro (letras impressas em livros de poesia) pode traçar outras informações sobre criação entre essas duas áreas de atuação?

 Originalmente, toda poesia lírica era canção. Com a escrita, tornou-se possível separar as palavras da música. A poesia escrita se tornou um gênero importante, que possibilitou novos tipos de expressão. Mas o parentesco entre poesia escrita e letra de música permanece. Apenas, a letra existe para fazer parte de uma canção. Não é lícito julgar uma letra independentemente da canção de que faz parte. Já a poesia escrita existe para ser lida por si. Em outras palavras, esta é autotélica (tem o fim em si mesma); aquela é heterotélica (tem seu fim fora de si, na canção).
  
A poesia no mercado editorial é sempre complexa, na sua opinião a poesia deve cada vez mais sair do livro e ganhar outros suportes? você acha que isso pode gerar um número de leitores mais expressivo?

 A poesia escrita é um gênero que jamais morrerá. Para mim, ela é a mais importante forma de poesia que existe. Isso não importa que ela possa ser lida em voz alta, cantada etc. Mas, para mim, a mais importante forma de fruição da poesia é a leitura individual. Um poema escrito num cartaz num ônibus, por exemplo, está disponível a todos os passageiros, mas é fruída (ou não) por cada um individualmente.

Das figuras de linguagem úteis ao poema, qual você utiliza ou mais tende a utilizar?

Que eu saiba, uso praticamente todas. Mas não sou a pessoa mais indicada para falar da poesia que escrevo.  Outros o fazem muito melhor. Aliás, na semana passada foi lançada pela Editora da UERJ uma coleção de livrinhos chamada “Ciranda da poesia”. Um deles, escrito por Alberto Pucheu, é sobre os poemas que escrevo. Sou suspeito, é claro, mas achei-o maravilhoso.

De toda a tentativa de experimentação poética, desde o Modernismo de 22, passando pela poesia Concreta e seus desdobramentos para além do verbal, o que se pode aproveitar na poesia feita hoje em dia? uma liberdade criativa?

 Sim. O grande legado de tudo isso foi a liberdade criativa. É possível usar qualquer uma das formas criadas no passado, é possível modificar essas formas, e é possível inventar novas formas. Para o poeta, essas formas são como as palavras, que ele escolhe de acordo com a finalidade que se impõe.

A letra poema “Eu vi o Rei”, musicada por Marina, você mencionou no filme “Palavra Encantada” ter sido feita a seu pai, mas em momento algum isso é mencionado na letra. Comente essa possibilidade que a poesia tem de dizer o indizível.

 É que tudo na poesia fala: as palavras, os sons das palavras, os sons das combinações das palavras, os ritmos, as formas do poema, das estrofes, dos versos, os significados explícitos, implícitos, metafóricos, alusivos das palavras e das combinações das palavras etc.; e cada uma dessas coisas interage com as demais, de modos surpreendentes.

A filosofia é uma forte área de atuação sua. Em que medida a poesia e a filosofia se encontram enquanto motor criativo, ao menos ambas tendem a uma interpretação do mundo idealizada. Ou são incompatíveis? 

Para mim, são coisas muito diferentes. A filosofia pretende vir principalmente da razão e do intelecto. A poesia pode vir de toda e qualquer faculdade.  

A poesia de Antonio Cícero feita recentemente tem alguma marca nova? uma nova abordagem? ou são reflexos dos mesmos temas, inquietações, isto é, existe alguma nova matriz em sua poesia? 

Talvez; mas, com eu disse, não sou a melhor pessoa para falar da poesia de Antonio Cicero. Alberto Pucheu o faz muito melhor, no livro que já mencionei.  




APARÊNCIAS
Não sou mais tolo não mais me queixo:

enganassem-me mais desenganassem-me mais

mais rápidas mais vorazes e arrebatadoras

mais volúveis mais voláteis

mais aparecessem para mim e desaparecessem

mais velassem mais desvelassem mais revelassem mais revelassem
mais eu viveria tantas mortes
morreria tantas vidas
jamais me queixaria
jamais.


-do livro Porventura, 2012