sexta-feira, fevereiro 16, 2018

LADODENTRO ENTREVISTA: RAMON NUNES MELLO


há um sol
dentro de
cada palavra 

Essa captação singular sobre a força da palavra e, sobretudo, do efeito poético da linguagem, foi um achado do poeta Ramon Nunes Mello.  

O autor escreveu os seguintes títulos em poesia: Vinis mofados (Língua Geral, 2009); Poemas tirados de notícias de jornal (Móbile, 2011),  seu livro mias recente foi lançado em 2016: Há um mar no fundo de cada sonho (Verso Brasil, 2016). 

Ramon é carioca e o mar é um signo recorrente em sua poesia, ele também organizou e integrou inúmeras antologias, é curador e representante legal da obra de de Rodrigo de Souza Leão. Como repórter, entrevistou mais de 120 escritores brasileiros.

Sobre ele já foi escrito o seguinte: Seus versos fragmentados mostram-se livres e consistentes, expondo a personalidade vívida e harmoniosa do autor de 32 anos, que se entrelaça em questões que abarcam o amor, a espiritualidade, a comunhão, o silêncio, a natureza, a vida e a morte. 

Outras nuances do seu trabalho com a linguagem consiste na experimentação, inconsciente, lirismo extraído do cotidiano com personalidade estética e uma explícita relação/influência  das letras  das canções, mais precisamente da nossa MPB. O autor de 34 anos é um dos nomes mais destacados da produção poética contemporânea e pode ser considerado um agitador cultural bem informado, além de um intenso ativista dos direitos humanos e um estudioso atento da Literatura Contemporânea. Desde 2015 Ramon Nunes Mello é curador e organizador da obra da poeta Adalgisa Nery e em 2017 recebeu o título de Mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ.





Qual sua motivação principal para escrever?

Escrevo por necessidade de criar, recriar a realidade. Escrever, nem sempre é fácil para mim, mas torna minha vida mais leve, pelo menos por alguns instantes.

Cita alguns dos autores que você mais reverencia e que constantemente te acompanham na hora da criação, algo como aquela angústia da influência.

Reverencio a poesia, e agradeço aos mestres que vieram antes. Na hora da criação, propriamente dita, tento deixar os companheiros sozinhos. Quando escrevo prosa, gosto muito de ler/reler poemas durante o processo, assim revisito os livros de Drummond, Bandeira, Gullar, Murilo Mendes, Manoel de Barros, Al Berto, Sophia de Mello, Ana C., Cecilia Meirelles, Hilda Hilst, Adalgisa Nery, além de acompanhar a produção meus contemporâneos – tenho gostado muitíssimo de ler Annita Costa Malufe. Quando escrevo poesia, gosto de ler prosa: Caio F., Noll, Clarice, diversos escritores que tem dom da beleza e da loucura da prosa como Carola Saavedra.

Seu livro mais recente: Há um mar no fundo de cada sonho (2016), dialoga com o signo do mar. De que modo veio essa inspiração tendo o mar como eixo principal?

Eu nasci perto do mar, na cidade de Araruama, na Região dos Lagos, minhas lembranças são encharcadas de água e sal. Recordo sempre das vezes que meu pai me levava junto com minha mãe e meus irmãos para acampar em Praia-Seca e passar a noite pescando, vigiando a linha com a isca... O mar sempre foi presente no meu imaginário, também através da fé: com os encantos de Yemanjá e dos seres do mar. Minha relação com o divino é um constante navegar, no mar cósmico do astral. Em tudo isso eu mergulho para escrever meus poemas, minhas histórias. Quanto ao meu último livro, o título é metáfora do mergulho na vida e seus mistérios, e aqui se inclui a minha relação com a linguagem frente ao vírus HIV.

De que modo é possível traçar um perfil da poesia brasileira contemporânea sendo você um autor que acompanha de perto a poesia e o contato com os escritores, organizando eventos, palestras, etc...

É difícil traçar um perfil, pois a literatura contemporânea é marcada pela diversidade de vozes e estilos. O que percebo é que há escritores que se preocupam mais com o diálogo com outros autores e outros mais com a própria escrita e performance. Nos últimos anos, a potência da produção poética das mulheres tem me chamado muita atenção: Angélica Freitas, Bruna Beber, Marília Garcia, Annita Costa Malufe (que já citei), Rita Isadora Pessoa, Luana Carvalho, Amora Pera, Maria Isabel Iorio, Laura Erber, Alice Sant’Anna, Tainá Rei, Leticia Novaes, Leticia Brito, Luna Vitrolira... E também poetas trans como Amara Moira, Linn da Quebrada e Virgínia Guitzel.

 A performance e a leitura aberta de poesia pode ser um caminho consistente e funcional para que a palavra poética não dependa mais do livro definitivamente para acontecer?

 A poesia oral sempre teve muita força, antes mesmo da existência do livro como suporte. Não penso que a performance poética e a leitura estão ou devem se separar do livro, entendo que tudo pode ser conjugado e coexistir fortalecendo o acesso a literatura.

Comente brevemente a força da canção em sua poesia, letra e música

Tenho muito respeito pela canção, e por mestres como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque, que fazem da música um exercício de expressão poética. Simultaneamente a leitura de poetas do livro, os poetas da canção me ensinaram muito sobre o fazer poético, através das letras, ritmos e melodias de suas canções.

A poesia Beat, a Tropicália e o Rock Brasil anos 80 são acontecimentos culturais que alimentaram produção poética dos anos 90 até agora. Como esses eventos bateram em ti?

Esses movimentos, que aliaram a literatura, a música e comportamento, me mostraram que é possível criar poesia para além do papel. Ler o poema “Uivo” de Allen Ginsberg foi tão impactante quanto ouvir o disco “Tropicália” e conhecer o pensamento de Tom Zé, Zé Celso, Rogério Duarte e Hélio Oiticica, por exemplo. Da mesma forma como as letras do Cazuza e do Renato Russo foram importantes para ampliar meu interesse pela poesia.

 A alteração dos estados de consciência como treino espiritual para alguma captação da instância poética te interessa para escrever?

Interessa-me mais a expansão do que a alteração da consciência, no sentido de ampliar a percepção da realidade através da presença. A captação instantânea não me interessa, pois prefiro vivenciar o estado de transcendência em plenitude, o contato com o sagrado, de forma íntegra e sem a preocupação com criação. A reverberação, o insight, o olhar mais atento ao que está ao redor e além da minha realidade, posteriori a uma experiência de transcendência, sim, me instigam a escrever.

Um poema que você não cansa de ler e por qual motivo?

 “Guardar” de Antonio Cicero, por me aproximar da compreensão do que é a poesia.

Guardar


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.


"Guardar - Poemas escolhidos", Editora Record - Rio de Janeiro, 1996, pág. 337.