Antonio Cícero é poeta e filósofo e, embora considere essas atividades opostas, consegue a proeza de transitar livremente entre os dois códigos. Através da poesia, Antonio Cícero tornou-se um dos principais letristas da MPB em suas parcerias com a irmã Marina Lima, desde o primeiro disco da cantora, Simples Como Fogo, de 1979, Cícero é o letrista da maioria das canções gravadas por Marina, é autor de sucessos como Pra Começar, Charme do Mundo, Virgem, À Francesa, Maresia, Eu Vi o Rei, Acontecimentos, Fullgás, entre outras dezenas de canções. Existem parcerias recorrentes também com João Bosco, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto, Orlando Moraes. Antonio Cícero é também um dos porta vozes do Rock Brasil, além de poeta atuante e um dos mais relevantes da geração 90. Ele sempre disse que só publicou poesia em livro mais tarde pois já sentia-se publicado nos discos, uma vez que uma multidão cantava em alto e bom som suas palavras num ginásio lotado.
Na poesia livresca, Cícero publicou Guardar (1996), A Cidade e os Livros (2002), Porventura (2012). Seu livro O Mundo Desde o Fim (1991) apresenta seu pensamento filosófico e o livro Finalidades sem Fins (2006), reúne artigos e ensaios onde poesia, canção, letra e filosofia são assuntos essenciais. Desde que Marina Lima sapecou o poema Canção da Alma Caiada da sua gaveta, sem o consentimento do autor, e a transformou em canção, o autor de Último Romântico (parceria com Lulu Santos) vem produzindo poemas que migraram das páginas para os discos, estreitando a relação poesia e letra de música e um conteúdo lírico e reflexivo capazes de tornar Antonio Cícero um dos pensadores contemporâneos mais importantes do país, seu trabalho ganha destaque como filósofo aliado ao seu trabalho de poeta da canção e do livro.
Cícero não hesita em publicar em livro uma letra de canção e torná-la mais que letra de canção, também um poema para ser lido sem o suporte da melodia e ainda assim emocionar o receptor. Segue uma entrevista inédita exclusiva para o LADODENTRO em que o poeta reflete de forma preciosa sobre os ofícios da nossa poesia. Segue o blog do entrevistado: http://antoniocicero.blogspot.com.br/.
Duas
ou três utilidades da poesia como arte crucial no mundo pós utópico.
De certo modo, a
verdadeira utilidade da poesia é nos transportar para uma dimensão da
existência em que a utilidade não conta. Em praticamente toda a nossa vida,
damos valor às coisas segundo a sua utilidade. É na medida em que uma coisa
serve para tal ou tal coisa, na medida em que ela é um meio para outra coisa,
que ela tem valor. Na poesia – e, de maneira geral, na arte – não é assim. Como
a brincadeira ou o jogo, a poesia, de maneira geral, não serve para nada. O que
ela faz é mobilizar e fundir de modos surpreendentes todas as nossas
faculdades: intelecto, imaginação, sensualidade, sensibilidade, razão etc.
Nela, espírito e matéria se confundem. Desse modo, ela nos proporciona um outro
modo – não utilitário – de apreensão do ser.
Como você percebe a ideia de gerar outros suportes para a veiculação do poema (assim como a canção), cartaz, vídeo, outros recursos para além do livro?
Muitas vezes olhamos para
um poema e ele nada nos diz. Aí, um dia, quando menos esperamos, olhamos para o
mesmo poema e ele nos parece maravilhoso. É que, no primeiro dia,
estávamos fechados para a poesia, ou para certa poesia; estávamos fechados para
essa dimensão não-utilitária da existência e da linguagem; já no outro dia,
estávamos abertos para ela. Ora, não podemos prever quando ocorrerá a nossa
abertura à poesia. Veicular a poesia em outros suportes torna mais possível que ocorra esse
encontro entre o poema e o momento em que o sujeito esteja aberto para a
poesia. Assim, eles criam a possibilidade de que, de repente, alguém que
nunca ligou para a poesia, descubra a maravilha que ela pode ser.
As aproximações entre poesia e canção não são
mais novidade. Você, que escreve para o canto e para a página e aproxima tão
bem a poesia cantada e a poesia de livro (letras impressas em livros
de poesia) pode traçar outras informações sobre criação entre essas
duas áreas de atuação?
Originalmente, toda poesia lírica era
canção. Com a escrita, tornou-se possível separar as palavras da música. A
poesia escrita se tornou um gênero importante, que possibilitou novos tipos de
expressão. Mas o parentesco entre poesia escrita e letra de música permanece.
Apenas, a letra existe para fazer parte de uma canção. Não é lícito julgar uma
letra independentemente da canção de que faz parte. Já a poesia escrita existe
para ser lida por si. Em outras palavras, esta é autotélica (tem o fim em si
mesma); aquela é heterotélica (tem seu fim fora de si, na canção).
A
poesia no mercado editorial é sempre complexa, na sua opinião a poesia deve
cada vez mais sair do livro e ganhar outros suportes? você acha que isso pode
gerar um número de leitores mais expressivo?
A poesia escrita é
um gênero que jamais morrerá. Para mim, ela é a mais importante forma de poesia
que existe. Isso não importa que ela possa ser lida em voz alta, cantada etc.
Mas, para mim, a mais importante forma de fruição da poesia é a leitura
individual. Um poema escrito num cartaz num ônibus, por exemplo, está
disponível a todos os passageiros, mas é fruída (ou não) por cada um
individualmente.
Das
figuras de linguagem úteis ao poema, qual você utiliza ou mais tende a
utilizar?
Que eu saiba, uso
praticamente todas. Mas não sou a pessoa mais indicada para falar da poesia que
escrevo. Outros o fazem muito melhor. Aliás, na semana passada foi
lançada pela Editora da UERJ uma coleção de livrinhos chamada “Ciranda da
poesia”. Um deles, escrito por Alberto Pucheu, é sobre os poemas que escrevo.
Sou suspeito, é claro, mas achei-o maravilhoso.
De toda a tentativa de
experimentação poética, desde o Modernismo de 22, passando pela poesia Concreta
e seus desdobramentos para além do verbal, o que se pode aproveitar na
poesia feita hoje em dia? uma liberdade criativa?
Sim. O grande
legado de tudo isso foi a liberdade criativa. É possível usar qualquer uma das
formas criadas no passado, é possível modificar essas formas, e é possível
inventar novas formas. Para o poeta, essas formas são como as palavras, que ele
escolhe de acordo com a finalidade que se impõe.
A letra poema “Eu vi o Rei”,
musicada por Marina, você mencionou no filme “Palavra Encantada” ter sido feita
a seu pai, mas em momento algum isso é mencionado na letra. Comente essa
possibilidade que a poesia tem de dizer o indizível.
É que tudo na poesia fala: as
palavras, os sons das palavras, os sons das combinações das palavras, os
ritmos, as formas do poema, das estrofes, dos versos, os significados
explícitos, implícitos, metafóricos, alusivos das palavras e das combinações
das palavras etc.; e cada uma dessas coisas interage com as demais, de modos
surpreendentes.
A filosofia é uma
forte área de atuação sua. Em que medida a poesia e a filosofia se
encontram enquanto motor criativo, ao menos ambas tendem a uma interpretação do
mundo idealizada. Ou são incompatíveis?
Para mim, são coisas muito diferentes. A filosofia
pretende vir principalmente da razão e do intelecto. A poesia pode vir de toda
e qualquer faculdade.
A
poesia de Antonio Cícero feita recentemente tem alguma marca nova? uma nova
abordagem? ou são reflexos dos mesmos temas, inquietações, isto é, existe
alguma nova matriz em sua poesia?
APARÊNCIAS
Não sou mais tolo não mais me queixo:
enganassem-me mais desenganassem-me mais
mais rápidas mais vorazes e arrebatadoras
mais volúveis mais voláteis
mais aparecessem para mim e desaparecessem
mais velassem mais desvelassem mais revelassem mais revelassem
mais eu viveria tantas mortes
morreria tantas vidas
jamais me queixaria
jamais.
-do livro Porventura, 2012