domingo, abril 01, 2012

FESTIPOA LITERÁRIA - A PALAVRA SOLTA NA SALIVA





Uma pergunta pertinente além de ótima pauta para um debate é a seguinte: qual o lugar da literatura para além daquilo que se convenciona como sendo o lugar da literatura? O convívio com a leitura normalmente se resume a salas de aula, bibliotecas, livrarias, na relação com o livro sempre existe um tratamento mais íntimo, particular e solitário, acompanhado de um isolamento para a fruição do texto. Esse é um dos prazeres que a prática da leitura proporciona, a captação de outro universo, outra ordem de códigos e significados em que o mundo real muitas vezes não chega a ser uma referência.

No entanto, todas as reflexões inteligentes que se façam para ressaltar o verdadeiro poder transformador da leitura nas civilizações, muitas vezes são menores do que a sobrevivência de empresas, negócios, práticas do sistema capitalista e coisas distantes aos nobres sentimentos em torno da literatura, que resiste e existe como arte, embora muitos não consigam enxergar suas verdadeiras utilidades nesse mundo, prova de uma cegueira mental que às vezes dá seus ares por aí.

Atrevo-me a responder que a o lugar da literatura é o lugar da linguagem: códigos e signos são as máquinas reais da evolução. E desde 2007 existe um evento literário em Porto Alegre capaz de alargar o tema literatura , pois celebra justamente o intercâmbio das linguagens presentes nas produções artísticas de hoje em dia. Um evento já incorporado a vida cultural da capital gaúcha cujo ponto de partida é a Senhora literatura. Justamente: a FestiPoa literária chega ao seu 5º ano consecutivo em 2012 com a marca da pluralidade e o valor das suas abordagens. Ainda não se tinha visto em Porto Alegre uma atividade literária declaradamente descontraída, que acolhe a diversidade e deixa inclusive o público a vontade, sem aquela pretensão incômoda e antipática de que literatura é para poucos entendidos, não existe a manutenção do velho conceito de que literatura é artigo de luxo. Existe sim uma profusão de informação, com repertório largo de opiniões, reflexões, visões arejadas sobre o tema literário.

Não há apenas a valorização do debate em que a ênfase está somente na leitura, a conversa vai além do livro e chega aos bastidores da escrita, ao mercado editorial, ao sistema literário, a presença do autor em carne , osso e coragem, as experimentações com a linguagem, a palavra levada ao palco, a preocupação em gerar a discussão em que se apontem novos caminhos para a literatura estar mais presente no cotidiano. E uma atenção especial em fazer com a palavra criativa comunique, dê informação através do faro estético.

A FestiPoa literária carrega em sua bagagem esse histórico da movimentação da palavra em vários suportes, palco, leitura, show e debate, exposição, não pretende veicular uma única opinião ou ponto de vista absoluto, exige o ingrediente da provocação, da diferença, do embate cultural onde se pode gerar saída para algum impasse aparentemente impossível de esclarecer. A negação do senso comum tendo em vista simultaneidade das discussões e o exercício de um pensamento dinâmico, tudo isso faz essa celebração da literatura afirmar-se na programação cultural da nossa cidade desde sua primeira edição. Já é natural que literatos e artista de um modo geral esperem a próxima temporada da FestiPoa literária, cuja programação tem ocorrido nos meses de março e abril.

O jornal Vaia poder ser considerado o irmão mais velho da FestiPoa, de certa forma o periódico funciona como uma versão impressa do evento. Do mesmo modo, reúne conteúdos literários variados e está sempre atento as novidades, lançamentos e projetos artísticos. Abre espaço para ensaios, entrevistas enormes, completas, que não deixam escapar nada sobre determinado autor, além das páginas generosas dedicadas a produção literária e poesia em suas edições, reunindo novos autores e nomes badalados.

Pode-se comparar o jornal Vaia a um dos suportes do projeto Festipoa, pois ele cumpre e veicula a mesma matéria literária e do mesmo jeito existe a despeito de qualquer padronização da área. Esse ano o jornal terá uma edição exclusiva inteiramente dedicada a 5º FestiPoa literária. Pode ariscar dizer que o jornal Vaia foi o sopro inicial desse evento literário mais eclético da cidade de Porto Alegre.

Um aspecto para mim muito importante na articulação do FestiPoa literária é aquilo que denomino como sendo hierarquia da consagração, ou seja, o critério de organização do evento não depende em momento algum da predileção do critério do autor renomado, não prioriza isso como pauta principal. E faz toda diferença. O nível de valorização do autor estreante ou mesmo sem um livro publicado convencionalmente, tem a mesma importância na execução do projeto.

Essa prática é inclusive destacada na programação, é comum, por exemplo, haver uma mesa que reúna as autoras com anos de carreira e publicado inúmeras vezes por uma editora de circulação nacional, junto com o jovem que recém publicou seu primeiro livro por uma gráfica regional. Evidentemente a atenção do público pode estar concentrada no autor renomado, no entanto, a surpresa do diálogo possível entre os dois nomes certamente será curiosa e inusitada: dessa aproximação pode haver uma nova informação, um choque de ideias, um faísca de gerações diferentes que tem em comum o ofício da escrita, com diferentes referências. Esse modo de formatar o evento é uma característica singular do FestiPoa, sem aquela típica ostentação ao nome ou tema consagrado.

A FestiPoa Literária é efetivamente a festa da literatura em Porto Alegre, sem perder a consciência da festa como celebração, como brinde e exaltação ao tema literário, desapegada a preconceitos ou regras excludentes: o público é parte integrante da programação tanto quanto a obra destacada ou o artista reverenciado. O público é organismo da festa e não enfeite. Em tempos felizes de fomentação e veiculação da leitura, desde ONGS a iniciativas públicas e privadas para a propagação da leitura, a FestiPoa é um brilho a mais na continuidade da difusão da leitura em nosso estado.

O evento organizado e produzido pelo agitador cultural Fernando Ramos, um nome de destaque e empenho em nome da literatura, cujo encantamento está no esforço deliberado em fazer a coisa acontecer de fato. Fernando Ramos é a medula e osso do evento, por causa do seu esforço o evento transformou-se numa importante atividade cultural que destaca a produção contemporânea literária. Agora com a parceria do Cabaré do Verbo e com o prêmio de destaque Fato Literário 2010, a FestiPoa já contou com a participação de autores e artistas regionais e de expressão nacional., Para citar alguns nomes: Marcelino Freire, Laerte, Antonio Cícero, Ademir Assunção, Rodrigo Garcia Lopes, Nelson de Oliveira, José Castello, Luíz Horácio, Nicolas Behr, Wladimir Cazé, Antonio Carlos Secchin, Virna Teixeira, Zeca Baleiro, Xico Sá.

A prática de contar a cada edição com um homenageado local trouxe ao FestiPoa a participação luxuosa de João Gilberto Nool, Luís Fernando Veríssimo e Sérgio Faraco. Os autores cara a cara com o público, respondendo perguntas, apresentando ideias, lendo ao vivo em voz alta seus textos, trazendo a literatura para fora de casa, permitindo uma relação coletiva com a palavra escrita, percebendo outros tratamentos para a prática literária, lembrando o movimento Beat e suas longas apresentações com leituras e conferências abertas sobre poesia e criação, fazendo a literatura atuar nos palcos, nas mesas das livrarias, nos bares e teatros (renovando, portanto, a ambientação para a prática literária) tornando a palavra viva e não escondida nas prateleiras, desafinando o coro repetido dos contentes e bagunçando um pouco a velha ordem do exercício solene da literatura, tornando-a linguagem crua e alcançando públicos maiores, integrada a música, artes plásticas, teatro, performance, a literatura espelhada em outras expressões artísticas, tudo ao mesmo tempo agora.

O êxito declarado do Festipoa já tem razão de ser. Promove inúmeras questões sobre a veiculação da literatura. De cara, traz à tona a renovação dos meios por onde pode circular o texto. Além disso, diz respeito também a relação obra, autor, público, os suportes por onde corre a palavra escrita, a literatura enquanto exercício não especificamente intelectual, as inúmeras práticas possíveis com a palavra criativa e as confluências realizáveis com outras áreas. Tudo isso é tema para o FestiPoa, a festa da palavra solta na saliva.


Publicado originalmente no Jornal Vaia - Março de 2012